terça-feira, 30 de março de 2010

Na grande área (por Armando Nogueira)


"Tudo acontece na grande área: a guerra de Pelé , a guerrilha de Garrincha, o chute fatal, a rebatida heroica, o drible temerário de um beque, a tragédia do goleiro, em cujos pés solitários a grama não floresce; na grande área, ressoa, implacável, a hora da verdade, erguendo e derrubando mitos no gesto simples de chutar uma bola; na grande área, nasce o gol, nasce o infarto que mata de emoção um torcedor; na grande área, onde os homens se acovardam e se engrandecem, a rasteira é pecado que no ato se paga pelo castigo do pênalti, entidade tão decisiva no destino de um jogo que, segundo um velho pensador do futebol, só devia ser cobrado pelo presidente do clube; nos canteiros da grande área, os pés imortais de Domingos da Guia pisando na grama de leve para não magoar a própria semente de sua arte - Nílton Santos.

Quanta emoção na pureza geométrica da grande área, onde não falta sequer o singelo mistério de uma meia-lua, quarto minguante dos fracos, lua cheia de Leônidas.

Vivi tristezas, vivo alegrias, tenho chorado, já cansei muito, às vezes rezo, vendo a bola correr, na grande área; nem mesmo os sentimentos mais subalternos da alma humana - nem deles a grande área do futebol me tem poupado o coração; já tremi de medo, já odiei, já invejei. A paixão do futebol tem me pesado a vida de tantas emoções que já não tenho mais o direito de lastimar se um dia a morte me queira surpreender no instante do gol."

Fonte: Texto de apresentação do livro "Na grande área", publicado em 1966.

Descanse em paz, poeta do jogo.

P.S.: Assistam também ao vídeo "A Bola", com narração de Paulo José:

http://www.youtube.com/watch?v=CtaOekwyB5Q

segunda-feira, 29 de março de 2010

Interação - Parte 2 (por Luis Fernando Verissimo)

De certa forma, a experiência teatral de um espectador moderno repete toda a história do teatro, como o feto repete toda história da espécie no ventre. Nada se parece mais com o teatro de antigamente do que o teatro infantil, onde também há tramas básicas, comédia ingênua, exageros trágicos e catarse. As crianças interferem na história como o público de antigamente, vaiando os vilões, incentivando os heróis, avisando aos berros que o lobo vai atacar e, não raro, subindo no palco para impedir o ataque. E por mais que façam, não são punidos. Continuam sendo "amiguinhos" e convidados a voltar por atores agradecidos, que muitas vezes precisam se controlar para não esgoelar o mais próximo, assim como eram toleradas as intromissões do público antigo. Quando fica adulto, o espectador aceita abusos do teatro adulto como uma forma de contrição: ele merece qualquer exame, de tanto que chateou quando era um espectador infantil. A agressividade do teatro moderno com o público, na verdade, é vingança.

Quem é tímido não tem nada a ver com tudo isto. Quando era pequeno, era dos poucos que ficava quieto no seu lugar do teatro, salvo por um ou outro sobressalto com o lobo. E no entanto, hoje, muitas vezes, é ele o escolhido para a interação, e para viver, sem merecer, o seu pior pesadelo. Não que ele tente de tudo para evitar o vexame. Para não se arriscar, pede um lugar nas últimas filas. Especifica: quer um lugar ruim, de preferência sem visão do palco, para também não ser visto do palco. Mesmo assim, fica nervoso. Quando batem no seu ombro, ele grita, "Eu não! Eu não!", até se dar conta de que é apenas alguém querendo entrar na sua fila e que a peça ainda não começou. Quando começa a peça, ele fica preparado. E ao menor sinal de interação - nem que seja um ator que se aproxime muito do proscênio ou olhe a plateia de um modo suspeito - ele não hesita. Foge para a rua. Correndo, pois há sempre a possibilidade de o elenco vir atrás dele.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Interação (Por Luis Fernando Verissimo)


Você eu não sei, mas um dos meus terrores é o teatro interativo. A possibilidade de acabar no palco, ou de alguém do palco acabar no meu colo. Sei que a interação com o público é uma antiga tradição teatral. No teatro grego, não era raro alguém da plateia avisar ao Édipo que aquela era a sua mãe, forçando o ator a se fingir de surdo para não estragar a trama. No teatro elisabetano, a plateia assistia às apresentações de pé, comendo e bebendo e interferindo na peça com palpites ou empadões bem mirados. Contam que alguns vilões de Shakespeare chegavam a interromper suas falas para responder aos insultos mais pesados do público, embora não haja registro de que algum tenha usado sua espada para silenciar alguém.

Em todos esses casos, a iniciativa era da plateia. Foi com o music hall que a participação do público começou a ser incentivada do palco. Mas a não ser por uma eventual corista querendo tirá-lo para dançar ou alguma piada dirigida à pesca, os espectadores da primeira fila não tinham muito o que temer.

Certamente nada parecido com o que viria com o teatro moderno, quando as primeiras filas se transformaram em áreas de exposição ao vexame - quando não à matéria orgânica. Quando, por assim dizer, o palco contra-atacou.

Ir ao teatro virou uma tortura e as primeiras filas um tormento. Você nunca sabe o que espirrará em você, ou se a mulher nua que sentará no seu colo não começará a morder sua orelha, ou não será um homem. Ou se você não será arrastado para o palco, despido e lambido por todo o elenco.

Dei para pedir lugar nas últimas filas do teatro, longe das ameaças. E se me avisam que terei a visão do palco obstruída, digo "melhor!". Não ver o palco significa que não me verão do palco.

Verissimo, Luis Fernando. Banquete com os deuses. Rio de Janeiro. Objetiva, 2003.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Razão e sensibilidade (por Artur Xexéo)


Artimanhas da programação juntam nas telas de cinema do Rio Martin Scorsese e Robert De Niro

Faz 15 anos que Robert De Niro não filma com Martin Scorsese. “Casino”, de 1995, foi o último dos oito filmes que a dupla fez junto. Mas foi uma parceria tão marcante que, até hoje, o nome de um remete imediatamente ao nome do outro. Já há algum tempo, Scorsese tem outro ator predileto: Leonardo DiCaprio. Seus quatro longas-metragens de ficção mais recentes têm o nome de Dicaprio como protagonista: "Guangues de Nova York", "O aviador", "Os infiltrados" e "Ilha do medo". Nenhum deles chega perto de alguns dos filmes da Era De Niro como "Caminhos perigosos", de 1973; "Taxi driver", de 76; "O touro indomável", de 80, e "Os bons companheiros", de 90 - os outros filmes da dupla, alem de "Casino", são "Cabo do medo", de 91; "O rei da comédia", de 82; e "New York New York", de 77.

Desde que se separaram na tela, as carreiras de Scorsese e de Niro tomaram rumos opostos. O diretor aperfeiçoou sua técnica, continuou fazendo filmes ambiciosos, entrou definitivamente para o primeiro time de cineastas americanos. Cada estreia de Scorsese é um acontecimento. De Niro pegou um atalho mais fácil. Muitas vezes, deixou de ser um grande ator que é para resolver seus personagens com caretas. Suas opções, ultimamente, são quase inexplicáveis (como justificar sua adesão a comedinhas simplórias como "Entrando numa fria" e "Máfia no divã"?). E ninguém espera mais nada de seus filmes.

De Niro, que tem dois Oscars na estante (um como coadjuvante em "O poderoso chefão 2", de Coppola, e outro por "O touro indomável"), não recebe uma indicação ao prêmio desde 1992, quando foi lembrado por "Cabo do medo". De 92 até agora, Scorsese ja foi indicado ao Oscar quatro vezes e ganhou em 2007 com "Os infiltrados". A carreira de um deslanchou; a do outro foi pro brejo.

Quis o destino da exibição cinematográfica que os dois se encontrassem mais uma vez nos cinemas do Rio. Infelizmente, em telas diferentes. Na semana que vem, Scorsese, que está em cartaz com "Ilha do medo", recebe De Niro, que protagoniza "Estão todos bem", de Kirk Jones. Ver o trabalho dos dois ao mesmo tempo é uma oportunidade rara de analisar as duas trajetórias. E, no conforto de agora, surpreendentemente, De Niro sai ganhando.

"Ilha do medo" demonstra como Scorsese se tornou um cineasta frio, cerebral, que privilegia a razão em detrimento da emoção. Filma com perfeição, é verdade. Talvez não exista em Hollywood cineasta melhor que ele. Mas a serviço do quê? "Ilha do medo" tem um dos planos mais sensacionais dos últimos tempos: uma panorâmica que mostra, na memória do investigador Teddy Daniels (o personagem de DiCaprio), o massacre de oficiais nazistas encontrados em Dachau, no fim da Segunda Guerra Mundial. É para se admirar, mas não para se emocionar. "Ilha do medo' começa cheio de possibilidades e, lá pelo meio da projeção, não consegue escapar do tédio. Um tédio realizado com perfeição, mas sempre tédio.
No outro lado, "Estão todos bem" exibe o melhor de Robert De Niro dos últimos anos. É um melodrama assumido. Na pele do aposentado e recém-viúvo Frank Goode, De Niro faz uma viagem pelos Estados Unidos para reencontrar os quatro filhos, já crescidos, que ele conhece pouco. Será uma jornada de arrependimento e emoção. O ator jogou fora todos os truques de trabalhos recentes. Com uma interpretação minimalista, faz o espectador conhecê-lo em poucos minutos. Dá até pra chorar um pouquinho.

Fico imaginando o que seria um reencontro do Martin Scorsese de "Ilha do medo" e Robert De Niro de "Estão todos bem". O banho de razão que um daria no outro aliado ao banho de sensibilidade que o outro daria no um tornariam a dupla imbatível mais uma vez. Mas os muitos planos do cineasta e do ator - o site IMDB lista 12 novos projetos de De Niro e meia dúzia de Scorsese - não preveem nada em conjunto. O cinema lamenta.

Fonte: O Globo - 24/03/2010

quarta-feira, 24 de março de 2010

Perelman é doido, ou entendeu tudo? (Por Elio Gaspari)

O russo esquisito que resolveu um dos sete mistérios da matemática tem muito a ensinar.

"EM 2008,
quando Lady Gaga gravou seu primeiro álbum, já se tinham passados seis anos do dia em que Grigori Perelman resolvera a Conjectura de Poincaré, um dos maiores mistérios da matemática. Num mundo que consome celebridades, a história de Perelman merece cinco minutos de atenção.

Ele é um matemático russo, de 43 anos, já passou meses sem trocar de roupa, raramente corta as unhas, a barba ou o cabelo. Vive com a mãe em São Petersburgo, tem horror a jornalistas e viveu sete anos praticamente recluso. Nem e-mails respondia. Quando esteve nos Estados Unidos, a base de sua alimentação era pão preto e iogurte. Recusou cátedras nas universidades de Princeton, Berkeley, Stanford e no MIT. É um excêntrico, mas é um excêntrico que tem bastante a ensinar. Até que ponto vive-se melhor parecendo maluco do que deixando-se bafejar pela celebridade?

Superando ciúmes, intrigas e rivalidades, Perelman acaba de conquistar o prêmio dos "Problemas do Milênio", com direito a um cheque de US$ 1 milhão, concedido por uma fundação americana, por ter decifrado um dos sete grandes mistérios da matemática. Em 2006, ofereceram-lhe uma honraria considerada equivalente a um Nobel de matemática. Recusou-a.

Para os leigos (como o signatário), a Conjectura de Poincaré é algo incompreensível. Ainda assim, pode-se perceber que Poincaré, um matemático francês que morreu em 1912, deixou para o mundo uma conjectura. Mais difícil será entender o que significa o segundo mistério: "A existência de Yang-Mills e a falha na massa".

Perelman resolveu a conjectura em 2002. Em vez de mandar seu trabalho para uma revista científica, onde um painel de estudiosos estudaria a consistência dos argumentos, simplesmente jogou os textos na internet, num arquivo público de trabalhos acadêmicos. O trabalho não dizia que a conjectura havia sido resolvida, essa tarefa cabia a quem o lesse. (Um matemático gastou três meses para entendê-lo.)

A comunidade dos sábios consumiu dois anos estudando, invejando e, em alguns casos, buscando uma falha na explicação. Perda de tempo.

Quando Perelman foi convidado por Princeton, pediram-lhe um currículo. Respondeu que, se não sabiam quem ele era, não deveriam convidá-lo. Como o MIT chamou-o depois que resolveu a Conjectura de Poincaré, recusou porque deveriam tê-lo chamado antes.

Num último convite podia ganhar quanto quisesse e fazer o que quisesse durante o tempo que bem entendesse. Respondeu que estava comprometido com seus alunos do ensino médio de São Petersburgo, o que nem era verdade.

Perelman ofendeu-se quando o "New York Times" disse que ele sustentava que resolvera a conjectura para ganhar US$ 1 milhão. Afinal, estudava o problema muito antes de o prêmio surgir e não sustentava coisa alguma. Decifrara a Conjectura de Poincaré, ponto.

Perelman é um matemático excêntrico e, pensando-se bem, Lady Gaga é uma roqueira quase convencional. Assim as coisas ficam fáceis e pode-se ir em paz ao próximo show. Contudo o mundo fica mais interessante quando se sabe que o negócio de Perelman é outro. Os matemáticos podem viver num mundo de liberdade e rigor absolutos. Ele escolheu uma vida de total integridade, sem concessões a coisa alguma. Ninguém manda nele, só a matemática, num diálogo que dispensa outras vozes."

Fonte: O Globo - 24/03/2010